sexta-feira, janeiro 24, 2014

      

    Edgar reencontra Esmeralda no supermercado. Era um sábado à tarde, pouca coisa depois das cinco. Haviam se visto pela última vez na residência de Beto, amigo comum que, na ocasião de sua partida para uma nova vida em outro país, convidara-os para beber alguma coisa e lhes dar o último adeus. Desde então um bom punhado de anos os separara, não tendo havido nessa avalanche de tempo sequer um sinal de fumaça em prol da antiga amizade.
    De forma como se não acreditasse na própria visão, Edgar, já tendo notado minutos antes que se tratava de Esmeralda, preferiu esconder-se em vez de prontamente abordá-la. Pôs-se num canto onde não pudesse ser facilmente visto e, enquanto procurava as palavras certas para dar início a uma conversa, sentiu fracas as pernas, trêmulas de aflição. Notou também, pelo volume da compra, que deveria haver novas pessoas na vida de Esmeralda, que com elas talvez formasse agora uma família, pois se residisse só, apenas recebendo visitas, não necessitaria de todo aquele alimento. Por fim, forçando um ar natural, meteu-se entre os corredores à procura de Esmeralda, logo a vendo esticada sobre a ponta dos pés, já que a pouca altura não alcançava o alto das prateleiras. Porém, até aos mais duros será difícil negar, quando o que está em questão seja escolher entre a coincidência ou o destino, que a única razão da desagradável dificuldade de Esmeralda era por a seu serviço o auxílio de Edgar facilitando-lhe a vida.
    Ao contrário do que imaginara, Edgar não percebeu em Esmeralda nenhuma dificuldade em reconhecê-lo. Olhava-o com o mesmo olhar cúmplice de sempre. A nítida expressão de familiaridade no rosto dela fê-lo vislumbrar que nunca estiveram realmente distantes e que ainda permaneciam imunes aos estragos deixados pelo silêncio e pela passagem do tempo.
Quero que o tempo cubra de poeira todas as verdades

que me ocupam como objetos de pouca utilidade



espreme o assunto

pra render mais notícia

poe na tela o defunto

a hora é propícia

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

A mulher, no lugar do cérebro, tem outro coração.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

fugindo da chuva
fugindo do tédio
procurando abrigo
procurando remédio
Digo por experiência própria que certas coisas nesse mundo não têm conserto. Em casos assim, é mais digno destruí-las de vez e por algo novo no lugar. Temo, aliás, estar vivendo nesse instante num lugar que cedo ou tarde encontrará o mesmo final. Assisto, desconsolado, aos intermináveis engarrafamentos e a fúria das enchentes derrubando casas com a mesma crueldade de povos bárbaros. Abaixo ou acima da linha do Equador, toda metrópole se equilibra numa corda bamba. Qualquer tentativa de progresso, por mais humilde e frugal que seja, parece revoltar a natureza. As ondas do mar cobrem nossos castelos de areia. Ainda me pergunto se foi bom negócio ter saído das cavernas.

domingo, janeiro 03, 2010

Me acusem de tudo exceto de farsante. Aceitarei com resignação qualquer acusação a mim dirijida, contudo irei até última instância na minha defesa toda vez que me vir sentado na cadeira dos réus diante de algozes que me apontam como farsa. Insistem nisso simplesmente porque nego até onde posso ser parte da ordem que defendem. Mas de fora vejo no entanto que perco pouca coisa. Perco o que havia ganhado como escravo. Ganho o que havia perdido de liberdade. Ser livre desde então é meu fardo. Não posso me adaptar ao que desejo destruir.

sábado, julho 11, 2009

Volte a sorrir

Depois de agredir meu estômago com dois belos e calóricos pedaços de pizza acompanhados de uma tampouco recomendável Coca-Cola em lata, procuro no balcão da padaria um singelo guardanapo para retirar o limbo gorduroso que fica sempre de lembrança nos arredores da boca. Até esse dia eu ainda acreditava que nem tudo era negócio, e que a verdadeira felicidade nunca estivera ao alcance do dinheiro. Para minha surpresa, entretanto, vejo no inocente guardanapo o anúncio de uma empresa de implante dentário. De súbito me dou conta do mesmo serviço sendo oferecido durante a programação das mesas-redondas que debatem nosso futebol e nos programas da tarde, esses voltados mais para as mulheres, embora em ambos, o que de fato interessa aos anunciantes, é a baixa posição em que a grande maioria da audiência desse tipo de entretenimento se encontra. E há lugar mais formidável para anunciar um serviço como esse do que um pedaço de papel cuja única utilidade é limpar a boca que, no caso de milhões de brasileiros e brasileiras, esconde sequer alguns poucos dentes que ainda restaram inteiros? Certamente a parte mais sedutora do anúncio é a promessa de que o implante trará de volta ao bangela o sorriso durante anos reprimido e aprisionado dentro da boca. Nisso não lhe condeno, porque já julguei como infeliz quem não sorria apenas por vergonha. Aí me pergunto quantos dentes tem que ter um sorriso para ser de felicidade e se realmente basta a alguém sorrir para ser feliz. Mas para o alívio dos desdentados - e ao contrário do que eu pensava - até felicidade o dinheiro compra.

sábado, junho 27, 2009

Às vezes comparo minha vida àquele número circense em que um sujeito qualquer equilibra vários pratos que rodam sobre os espetos. Os pratos vão perdendo velocidade e para não se quebrarem no chão precisam que o infeliz aflito esteja sempre lhes dando impulso - mas há dez pratos para equilibrar, e enquanto ele sequer alcançou o décimo o primeiro já dá sinais de socorro. Assim é em mim e não creio que haja quem escape. Há em cada prato meu um pedaço de mim que é meu dever manter em equilíbrio.

domingo, junho 21, 2009

Sempre depois das três eu paro um pouco o serviço e tomo um café. Tem dias que vai frio mesmo - nossa garrafa térmica, de fabricação duvidosa, não sustenta quente o café por muito tempo; se fosse numa cafeteira automática, dessas de empresa grande, a dose nunca sairia fria. Mas trabalho agora numa repartição pública do município - e cafeteira automática por aqui é um luxo proibido, uma injúria em relação ao resto. Trabalhei em empresa grande, também. Aí quem ofende é a garrafa térmica - e como tudo naquele lugar tinha que parecer moderno, a cafeteira automática de certa forma é uma necessidade. O ruim era para as pessoas, que na maioria do tempo tinham também que parecer modernas, pelo menos por fora, e por isso se vestiam mais ou menos de forma igual, como se fossem modernas cafeteiras automáticas em vez de garrafas térmicas com café de ontem.